Poema "Isto" - Fernando Pessoa


Poema Isto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.


Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.


Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Assunto: o fingimento e a criação artística; a racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não usando o coração).


Divisão do poema: duas primeiras quintilhas - negação de que finge ou mente; justificação de que o que faz é a racionalização dos sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;

última quintilha - argumentação de que ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os sentimentos e elaborando uma nova realidade - a arte.


sentido da 1ª estrofe: reconhecimento do que dizem e negação de que finge ou mente "sinto com a imaginação/ Não uso o coração" - expressão da intelectualização do sentimento.


comparação da 2ª estrofe: "Tudo o que sonho ou passo/ O que me falha ou finda" (primeiro termo da comparação) "(...) um terraço/ Sobre outra coisa ainda" (segundo termo), ou seja, o mundo real ("terraço") é reflexo de ("Sobre outra coisa ainda") um mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou platónico, mundo que fascina o sujeito poético).


situação a que chega o sujeito poético - "livre de meu enleio" (desligado do tema) . há um acto de fingimento de pura elaboração estética e o leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir? Sinta quem lê!")



O poema "Isto" apresenta-se como uma espécie de esclarecimento em relação à questão do fingimento poético enunciada em "Autopsicografia" - não há mentira no acto de criação poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do "sentir" da racionalização. Aqui, o sujeito poético vai mais longe já que, negando o "uso do coração", aponta para a simultaneidade dos actos de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação criadora. A comparação presente na 2ª estrofe (vv.6-9) evidencia o facto de a realidade que envolve o sujeito poético ser apenas a "ponte" para "outra coisa": a obra poética, expressão máxima do Belo.

Na 3ª estrofe, introduzida pela expressão "Por isso" de valor conclusivo/ explicativo, o sujeito poético recusa a poesia como expressão imediata das sensações. O sentir, no sentido convencional do termo, é remetido para o leitor.


"Fingir" não é o mesmo que "mentir" é a tese defendida. Não há mentira no acto de criação poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do "sentir", da racionalização dos sentimentos vividos pelo sujeito poético. O sujeito poético vai mais longe já que, negando o "uso do coração", aponta para a simultaneidade dos actos de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação criadora.

Poema "Autopsicografia"

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração


Esta composição poética é uma esplêndida síntese do que Pessoa pensava sobre a génese e a natureza da poesia. Podemos, pois, considerá-lo como uma verdadeira "arte poética".
O assunto do poema desenvolve-se em três partes lógicas, que correspondem a cada uma das estrofes.
Na primeira parte, o primeiro verso contém a ideia fundamental do poema, na frase de tipo axiomático "o poeta é um fingidor", que, logo a seguir, é explicado, ou confirmado, por meio de uma particularização centrada na dor.
Quer isto dizer que a poesia não está na dor experimentada, ou sentida realmente, mas no fingimento dela. Isto é, a dor sentida, a dor real, para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, tem de ser expressa em linguagem poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente.
Não basta, para haver poesia, a expressão espontânea dessa dor real, tal como o faria, por exemplo, um doente relatando a sua dor ao médico. Não há poesia, não há arte sem imaginação, sem que o real seja imaginado de forma a exprimir-se artisticamente, de forma a surgir como um objectivo poético (artístico), de forma a concretizar-se em arte.
Esta concretização da dor no poema opera na memória do poeta o retorno à sua dor inicial, parecendo-lhe a dor imaginada mais autêntica do que a dor real. É a sobreposição do objecto artístico à realidade objectiva que lhe serviu de base: “chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente”. Isto conduz-nos à ideia de fruição artística, da parte do poeta.
Na segunda parte do poema, o poeta alude à fruição artística da parte do leitor. Este não sente a dor real (inicial), que o poeta sentiu, nem a dor imaginária (dor em imagens) que o poeta imaginou, ao ser artífice do poema, nem a dor que eles (leitores) têm, mas só a que eles não têm. Isto é, o que o leitor sente é uma quarta dor que se liberta do poema, que é interpretado à maneira de cada leitor.
Há na segunda estrofe referência a quatro dores: a dor sentida (real), a dor fingida pelo poeta, a dor real do leitor e a dor lida (dor intelectualizada que provém da interpretação do leitor e que é objecto da sua fruição.
A terceira parte do poema, como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui uma espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um comboio de corda sempre a girar nas calhas da roda (que o destino fatalmente traçou) para entreter a razão. Há aqui uma referência à função lúdica da poesia, que começa na fruição de que o próprio poeta goza, no acto da criação artística. São aqui marcados os dois pólos em que se processa a criação do poema: o coração (as sensações donde o poema nasce) e a razão (a imaginação onde o poema é inventado). Fecha-se neste fim do poema como que um círculo cuja linha limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica do jogo sensação-imaginação.
Quanto aos aspectos morfo-sintácticos, desde logo a ligação por meio do síndeto (coordenativa "e") das três estrofes do poema impondo não só a divisão do texto em três partes lógicas, mas também sugerindo uma sequência lógica no desenvolvimento do assunto.
Os verbos, com excepção da forma teve (pretérito perfeito), encontram-se no presente, o que está de acordo com a natureza teórica do poema, que é anunciada pelo título "Autopsicografia" (estudo que o poeta faz do fenómeno psicológico que nele se passa, no acto de criação artística, portanto no presente).
A forma do perfeito "teve" explica-se porque é exigida para marcar a prioridade temporal em que o poeta experimentou as suas dores em relação ao tempo (presente) em que o leitor experimenta a dor lida.
A expressão infinitiva "a entreter" apresenta-se com um nítido aspecto durativo, insinuando a repetição continuada do processo criativo. Note-se a insistência do poeta no processo mais importante da criação poética: o fingimento. Este processo é marcado pelas formas verbais "finge" e "fingir" e pelo substantivo "fingidor". O verbo fingir (do latim "fingere " = fingir, pintar, desenhar, construir) aponta não apenas para disfarçar, mas também para construir, modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvido pelo poeta na produção do poema: o poeta é um artífice.
É interessante a perífrase "os que lêem o que escreve" (para significar os leitores) por ser portadora de uma expressividade especial: aponta para os dois intervenientes fundamentais do processo poético --o emissor (poeta) e os receptores (leitores).
Além da reiteração (repetição), já apontada, do verbo fingir, há ainda a do verbo sentir, que não se deve desligar da repetição do substantivo dor (três vezes), além de outras três vezes que se repete por intermédio de pronomes, ou expressões ("que","as duas", "a que"). A insistência na dor e no sentir está de acordo com o facto de o poeta ter tomado a dor como tema exemplificativo da criação poética e pelo facto de as sensações (o sentir) serem o ponto de partida dessa criação.
Em relação à sensação do sujeito lírico e dos leitores, são expressivos os advérbios: "Finge tão completamente";... Deveras senta"; "...sentem bem". Estes advérbios sugerem a veemência, o rigor com que a sensação da dor se impõe, quer ao poeta quer aos leitores. Os advérbios estão pois a marcar a intenção do autor: expor a sua teoria poética com rigor. O acto de fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pela expressão adverbial "tão completamente", mas também por meio da subordinada consecutiva "que chega a fingir". Notemos que a subordinação (hipotaxe) é muito mais importante do que a coordenação, o que está de harmonia com um discurso teórico que tem por finalidade apresentar uma teoria da criação poética.
Repare-se na expressividade das duas metáforas, de valor altamente simbólico, que se encontram na última estrofe: calhas de roda e comboio de corda. Esse comboio de corda (o coração), ultrapassando o significado denotativo de brinquedo, aponta sobretudo para um sentido simbólico relacionado com a função lúdica da poesia., e assim, gira nas calhas de roda. Também essas calhas de roda ultrapassam o significado de carris (correspondente ao sentido de comboio de corda) para apontarem simbolicamente para um rumo necessário, marcado pelo destino, qualquer coisa que sucede por fatalidade, na vida (na roda da vida).
O poeta, é pois, um ser predestinado a brincar intelectualmente com as sensações, elevando-as ao nível da arte poética, transformando-as num objectivo, artístico, que é o poema, também objecto de fruição lúdica para os leitores.
No que toca à forma do poema, aos seus aspectos fónicos, parecer-nos-á estranho que Pessoa tenha escolhido o verso de redondilha (verso curto de sete sílabas), de feição rítmica popular, distribuídos em quadras, para expor uma teoria intelectualizada e de alto nível mental. Trata-se de um entre tantos paradoxos de que o proceder de Pessoa é fértil. Note-se que os casos frequentes de transporte, verificados em grande parte dos versos vem reduzir as dificuldades que o metro curto poderia oferecer ao desbobinar do raciocínio do poeta.
A rima é sempre cruzada, apresentando uma certa irregularidade nos versos 1º e 3º da última estrofe. Notar os dois pares rimáticos fingidor/dor e razão/coração, em que se poderá ver uma certa intenção expressiva, se relacionarmos razão com fingidor e o coração com dor: ficariam assim em lugar de destaque, bem marcados os dois pólos de criação poética – as sensações e o fingimento.
O título do poema pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo psíquico que nele se passa, ao elaborar um texto poético. Como se explica, então que o poeta nunca empregue o pronome "eu", nem qualquer verbo na primeira pessoa, e que parte precisamente de uma afirmação axiomática, "O poeta é um fingidor", de aplicação universal, aplicável a todos os poetas? "Este poema está construído na 3ª pessoa como a lei de Newton, ou qualquer outro enunciado científico" – afirma A. J. Saraiva – "para significar que é a inteligência, como um ser autónomo, que explica o processo de criação poética".
Por meio do título, o autor quis significar que a teoria da criação poética, exposta no poema, de valor universal porque aplicável a todo o verdadeiro poeta, foi elaborada por via da auto-introspeccção, por meio da qual Fernando Pessoa verificou o processo em si próprio. O título aponta para o palco de experimentação e verificação de uma teoria poética que o autor julgou de valor universal.

Fernando Pessoa Ortónimo











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Fernando Pessoa ortónimo - apresentação PPT
















Fernando Pessoa - Ortónimo


As temáticas:
· a intersecção entre o sonho de um tempo em que o poeta diz ter sido feliz e a realidade (ex.: "Chuva Oblíqua");
· a angústia existencial e a nostalgia de um tempo perdido (do Eu, de um bem perdido, das imagens da infância...);
· a distância entre o idealizado e o realizado - e a consequente frustração ("Tudo o que faço ou medito");
· a máscara e o fingimento como elaboração mental dos conceitos que exprimem as emoções ou o que quer comunicar (ex.: "Autopsicografia");
· a intelectualização das emoções e dos sentimentos para elaboração da arte;
· o ocultismo como fonte de explicação da realidade e o hermetismo (ex.: "Eros" e "Psique"),
· tradução dos sentimentos na linguagem do leitor, pois o que se sente é incomunicável.

Linguagem e estilo:
· linguagem simples, espontânea, mas sóbria, simbólica e esóterica;
· recorrência frequente a adjectivos, comparações, metáforas e imagens para traduzir constatações ou reflexões;
· preferência pela métrica curta, tradicional - redondilha;
· aliterações, onomatopeias (imitação de sons), utilização de rima.

Fernando Pessoa - Ortónimo

Características da poesia do Ortónimo



Sinceridade / fingimento; consciência/inconsciência;sentir/pensar; a desagregação do tempo


A poesia do ortónimo (diferente de pseudónimo) é uma tentativa de resposta a várias inquietações que perturbam o poeta. A realidade por si percepcionada causa-lhe uma atitude de estranheza e, consequentemente, condu-lo a uma situação de negação face ao que as suas percepções lhe transmitem. Assim, Fernando Pessoa recusa o mundo sensível, privilegiando o mundo inteligível (platónico), aquele a que ele não acesso ("Essa coisa é que é linda", em "Isto").
Esta inquietação dá origem a uma poesia que abrange várias tendências que vão desde a nostalgia de um bem perdido até ao interseccionismo impressionista.
Uma das principais características de Pessoa ortónimo é a dor de pensar que o persegue desde sempre e que manifesta em vários poemas. Como tal, são frequentes as tensões ou dicotomias que espelham a sua complexidade interior.
Quanto à dicotomia sinceridade/fingimento, o poeta questiona-se sobre a sinceridade poética e conclui que "fingir é conhecer-se", daí a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. Lugar de destaque ocupa o poema "Autopsicografia" (teorizador da poética pessoana), em que se definem claramente os lugares da inteligência e do coração (sentimento) na criação artística. É assim que este poeta, possuidor de uma impressionante capacidade de despersonalização (sem contudo deixar de ser um), procura, através da fragmentação do eu ("Continuamente me estranho", em "Não sei quantas almas tenho"), atingir a finalidade da Arte, servindo-se da intelectualização do sentimento que fundamenta o poeta fingidor.
Debate-se frequentemente com as dialécticas sentir/pensar e conciência/inconsciência, tentando encontrar um ponto de equilíbrio, o que não consegue. Em "Ela canta pobre ceifeira", o poeta vive intensamente estas dicotomias: deseja ser a ceifeira que canta inconscientemente ("Ter a tua alegre inconsciência") e simultaneamente "a consciência disso!". Enquanto ela se julga feliz por apenas sentir, não intelectualizar as suas emoções ("Ah, canta, canta sem razão!"), o poeta está infeliz porque pensa, porque racionaliza em excesso ("O que em mim sente, 'sta pensando"). Na mesma linha, cita-se o poema "Gato que brincas na rua", no qual o poeta reforça a ideia da felicidade de não pensar ("És feliz porque és assim") e a dor do sujeito poético devido à incapacidade de racionalização do animal.
Em “Leve, breve, suave”, Pessoa manifesta o seu desalento, a sua frustração quando o ”eu" consciente do poeta intervém (“Escuto, e passou... / Parece que foi só porque escutei / Que parou.”). A frustração é o resultado de uma incapacidade de atingir plenamente a satisfação, a felicidade (“Nunca, nunca, em nada, / Raie a madrugada, / Ou ‘splenda o dia, ou doire no declive. / Tive / Prazer a durar / Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir / gozar.").

A luta incessante entre as várias dialécticas origina a dor de pensar e a angústia existencial que tão bem caracterizam este poeta que é “um mar de sargaço” (“Tudo o que faço ou medito”), pois, quando quer, “quer o infinito”, “Fazendo, nada é verdade”.
Poeta da desilusão, tem uma visão negativa do mundo e da vida, como o manifesta no poema “Abdicação”, onde se entrega à “noite eterna” (morte) como se fosse a sua própria mãe.
Outro problema que perpassa a poesia do ortónimo é a desagregação do tempo. Para o poeta, o tempo é um factor de desagregação, porque tudo é breve, efémero. Esta fugacidade da vida fá-lo desejar ser criança de novo, visto que a infância lhe surge como o único momento possível de paz e felicidade, como documentam os poemas (de carácter tradicionalista) “0 menino da sua mãe” e “Não sei, ama, onde era”.
Coexistem duas, vertentes na sua produção poética: uma de carácter tradicionalista e outra de carácter modernista. E é a primeira que oferece poemas de métrica curta, manifestando preferência pela quadra e quintilha, a fazer lembrar o lirismo português, com marcas saudosistas. A modernista inicia já o processo de ruptura, concretizando-se em formas poéticas heterostróficas e heterométricas. A criação dos heterónimos insere-se, também, nesta vertente.

Heterometria – consiste na irregularidade métrica, típica da poesia modernista.
Heterostrofia – consiste na irregularidade estrófica, típica da poesia modernista.