Perfil literário - Ricardo Reis

Na carta a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa afirma: "(...) Aí por 1912, salvo erro (...), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (...) e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis)".
Apesar de anterior a Caeiro, o novo heterónimo pessoano só surge depois da necessidade de arranjar uns discípulos para o mestre. Ricardo Reis é arrancado “do seu falso paganismo (…) porque nessa altura já o via”. Mais adiante Pessoa diz: “Ricardo Reis nasceu em 1887 (…), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil” (por ser monárquico); é “latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria”.


O neopaganismo

O paganismo de Reis não é instintivo como o de Caeiro. O do primeiro assenta numa ideologia classicista que lhe permite elevar-se acima do cristianismo e assumir, perante este, uma atitude de desprezo. Como tal, é designado de neopaganismo (novo paganismo), pelo facto de surgir após o cristianismo e aparecer em Reis como uma reconstrução da essência do verdadeiro paganismo. Neste sentido, este heterónimo afirma-se crente nos deuses, que estão acima dos homens, mas acima dos dois está ainda o destino (fatum). Tenta assumir a postura dos deuses, adquirindo, através de um exercício de autodisciplina, a calma e a indiferença, face a um destino já traçado.
A poesia de Ricardo Reis apresenta um tom moralista. Nela revela-se um estilo sentencioso, cheio de conselhos morais e de apelo constante à indiferença, factores que lhe conferem um intenso dramatismo e fatalismo (sendo este traçado pelo destino que atribui ao homem uma vida efémera).
A herança clássica do poeta revê-se no recurso à ode bem como à mitologia. Preconizado é o regresso à Grécia antiga, por ser considerada um modelo de perfeição. Reis acredita na liberdade concedida pelos deuses ("Só esta liberdade nos concedem / Os deuses...") e propõe que os imitemos ("Nós, imitando os deuses, (...) / Ergamos a nossa vida / E os deuses saberão agradecer-nos / O sermos tão como eles").

O Epicurismo e o Estoicismo


Detentor de uma dignidade sóbria, de uma perfeita clareza de ideias, e de uma concepção de vida simples, o mais clássico dos heterónimos pessoanos prefere o silêncio nostálgico para enfrentar a sorte a que os deuses o votaram.
Esta é a atitude que adopta para evitar a dor, para procurar a calma, autodisciplinar-se, nem que para isso tenha de abdicar dos prazeres da vida, tal como preconizava o estoicismo. Reis revela um comportamento reflectido e ponderado, resultante da adopção do epicurismo, que defendia que o sofrimento só pode ser evitado quando não há entrega às grandes paixões ou aos instintos profundos. O prazer, para ser estável e duradoiro, não pode resultar de sentimentos fortes, deve ser ponderado, isto é, doseado pela razão. Por isso, e para se evitarem as preocupações, deve viver-se o momento presente (Carpe diem) e acreditar no poder da razão, remetendo a emoção para a indiferença, "sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz", deixando fluir o tempo, simbolizado nas águas do rio, ou amando as rosas, que com ele se identificam pela fragilidade e transitoriedade a que estão sujeitas ("Nascem nascido já o Sol, e acabam / Antes que Apolo deixe / O seu curso visível").
Ricardo Reis procura a ataraxia, que patenteia em vários poemas, por exemplo em "Prefiro rosas, meu amor, à pátria", onde emite o desejo de que a vida não o canse ("Logo que a vida não me canse..."), ou no curto texto que se segue:

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


A composição apresentada reflecte bem a tristeza que parece acompanhar este heterónimo pessoano e que ilustra a seriedade de um homem que se situa entre o não pensamento de Caeiro e a abulia de Fernando Pessoa de Campos na última fase.
As linhas ideológicas presentes na poesia de Reis reflectem um homem que sofre e vive o drama da transitoriedade da vida, facto que lhe provoca sofrimento (por imaginar antecipadamente a morte). Ressalta, também, o amor à vida rústica e à natureza, a procura da perfeição, a intelectualização das emoções, facetas reveladoras de um homem lúcido e cauteloso, que procura construir uma felicidade relativa, um misto de resignação e gozo moderado, de forma a não comprometer a sua liberdade interior (liberdade esta que só existe quando há ilusão). Nesta linha se preconiza a fruição das coisas, sem demasiado esforço ou risco, e a aceitação de tudo, uma vez que se considera o destino mais importante do que a força humana. Aceite a condição de ser humano, transforma-se o poeta num moralizador que aconselha a evitar as grandes paixões.
Poeta da razão e defensor de um epicurismo temperado de estoicismo, Ricardo Reis acaba por se aproximar do Campos da terceira fase (abulia) e do ortónimo, pelo tom melancólico que se liberta da sua poesia.

Sem comentários: